A religião é, sem dúvida, o tema que mais me fascina no universo da sexualidade. E por inúmeras razões.

 

 

Logo à partida pelos seus paradoxos. No geral, fora as questões políticas, as religiões mais expansivas baseiam as suas leis e os seus dogmas mais pungentes em questões de foro íntimo e sexual, através da anulação ou condicionamento das mesmas, quando este é exactamente o tema mais difícil de anular ou condicionar por ser intrinsecamente inerente a todo o ser humano. Logo, a forma que a religião encontrou para contornar o “problema da sexualidade” é, não focar-se no sexo propriamente dito, pois esse tem a função basilar da procriação, mas na ideia do prazer. Anular o prazer é o principal objectivo das religiões, sobretudo as ortodoxas. Desde mutilações físicas a lavagens cerebrais, passando por condenações à prisão e à morte, como não se pode impedir a ação fisiológica, pode-se pelo menos impedir que ela seja agradável. E é nesse nível que as coisas começam a ganhar contornos interessantes. Porque apesar da questão da sexualidade ser algo desconfortável no seio das religiões, é apenas no prazer que está realmente o pecado. E se é no prazer que está o pecado, então é no oposto que está a salvação: no não-prazer. O problema é definir o que é o não-prazer. O não-prazer pode ser muita coisa. No limite, pode ser dor (como inversão do prazer) ou abstinência (como anulação do prazer). O interessante é quando essas oposições ao prazer se tornam também elas prazer. Quando se sente prazer na dor e quando a abstinência se torna um preâmbulo do prazer ou um estimulador de novas ideias e fantasias que extrapolam o mero prazer físico e mundano. É nestas deambulações e constantes paradoxos que vivem as pessoas (auto)condicionadas pela religião. E isso é que é fascinante. Tanto as que conseguem conviver com esses paradoxos, como as que não conseguem. As batalhas psicológicas entre a razão e a emoção, a lógica e a fé, do desejo e a crença da são só por si matéria inflamável para estórias de um erotismo atroz.

"O êxtase de Santa Teresa" - Gian Lorenzo Bernini. 1647-1652. Itália
Detalhe.

Quem tudo pode…

Outra questão que se prende com a religião e a sexualidade é a questão do poder. Normalmente, em todas as outras áreas da sexualidade, principalmente a conjugal, a relação de poder é sempre objectiva. A comunicação é feita bilateralmente, entre duas (ou mais) pessoas que se conhecem, que se envolvem, que evoluem, que se descobrem, que se exploram, que nutrem sentimentos uma pela outra, que se vêem, se sentem, se tocam. Há uma troca mais ou menos igualitária de significados, sensações e algo que poderá ser designado como “energia”. Há uma fluidez que se pode medir, que causa ações e reações, que tem impacto e consequências. Mas no contexto religioso, numa relação de poder com um deus que não pode nunca ser questionado, não pode nunca ser posto em causa, que tudo sente, tudo vê, tudo sabe e tudo pode, há muito pouco ou nenhum espaço de manobra. Então, a relação entre a pessoa e esse deus é não só baseada numa desigualdade colossal, como é também unilateral. O jogo de poder está completamente comprometido logo à partida, e ainda por cima é feito através de intermediários (padres, sacerdotes, afins), e nunca pelos próprios. As regras estão escritas, de forma mais ou menos clara, mas cada um interpreta-as à sua maneira. As relações mantidas sobre a alçada de uma religião, sustêm-se segundo parâmetros específicos ou, caso algum desses parâmetros seja desrespeitado, a consequência será apenas e só a condenação eterna a um castigo que é ainda mais assustador por ser desconhecido (inferno, purgatório ou céu, eis a questão?). O mais curioso, é que mesmo nestes casos, as regras são todas quebradas constantemente, por quase todos os “fiéis”, mas sempre às escondidas daquele que tudo vê e tudo ouve. Difícil ganhar. Mas assim como assim, já que são todos pecadores desde o dia em que nasceram, mais vale ter a fama e o proveito, não vá o diabo tecê-las…

 

Um símbolo vale mil palavras

Finalmente, mas não só, a outra vertente da religião que me fascina em relação à sexualidade é a simbologia. Há uma riqueza, uma sofisticação, uma subversão e uma perversão imensuráveis, tanto na representação canônica como na criação de narrativas. Ao mesmo tempo que se tenta purificar tudo o que possa ser pecaminoso, acaba por se dar origem a novos e mais requintados conceitos libidinosos, muitos deles concretizáveis, outros território fértil para a imaginação.

 

"Adão e Eva" - Peter Paul Rubens. 1600. Bélgica
"O martírio de São Sebastião" - Reni Guido. 1616. Itália
"Amor sagrado e Amor profano" - Giovanni Baglione, 1602. Itália

No meio está a virtude

Este é notoriamente um tema que não se esgota, e nem creio que alguma vez se irá esgotar. No universo do prazer e principalmente da sexualidade, grande parte da estimulação e da excitação provêm exactamente do fruto proibido. Haverá sempre uma necessidade de haver regras, e quanto mais supra-impostas, melhor. Quanto maior é o poder que se subverte, melhor. Quanto mais tentadora for a tentação, mais a imaginação voa. Quanto mais formos contra o status-quo imposto, maior será a rebelião do coração e da libido. E quanto mais rebeldes formos, mais estamos a pôr à prova o livre arbítrio que um ser todo-poderoso teve a gentileza (ou a veleidade) de nos providenciar. Só a ironia dá tesão.

Na minha primeira incursão pela narrativa cinematográfica, esse foi o tema que escolhi abordar. Incutido por uma série de debates e performances feitas pela associação cultural UM COLECTIVO, e em particular pela actriz Cátia Terrinca, lancei o desafio à escritora Marisa Costa para desenvolver uma premissa que sempre tinha povoado a minha imaginação: e se uma mulher fosse sexualmente possuída por Deus. Como lidaria ela com esse tipo de prazer proibido, mas ao mesmo tempo divino? O resultado dessa reflexão chama-se “Ele está no meio de nós”.

Para que seja sempre um prazer